A presença da pintura
"Acabou-se o Novo Expressionismo, a pintura do grande gesto ou da cor selvagem". Uma nova brigada artística invadiu a praia, como os faxineiros de segunda-feira, ávidos por apagar os últimos vestígios de um colorido fim-de-semana. Nesse bando de recém-chegados estão os artistas da Neo Geo - que brincam com uma nova geometria - os Simulacionistas - que aproveitam imagens conhecidas de obras de arte já realizadas - e ainda os pintores que preferem trabalhar com ampliações fotográficas, com palavras sobre a tela ou finalmente os novos sacerdotes do Minimalismo. Na verdade, para quem acompanha o calendário das exposições e dos catálogos internacionais, a primeira impressão é de que estamos chegando a um período de Inquisição para a pintura. "Trabalhou apenas efeitos de formas e cores? Vai para a fogueira! Usou pincéis e tintas e imagens muito simples? Merece as torturas do esquecimento!"
É justamente quando uma receita do figurino artístico começa a ganhar uma certa projeção - e isto realmente corresponde ao final dos anos 80 - o pintor Luiz Aquila começa uma longa peregrinação por todo o país para mostrar o seu percurso como pintor. Desta maneira, ele realmente assume uma direção singular e estas exposições assumem um caráter bastante especial. Elas valem para demonstrar que a qualidade de uma produção artística não depende necessariamente do alinhamento à última tendência dominante. Ao contrário, que é justamente de universos individuais bem construídos que a arte a cada período se realimenta.
Aquila justifica com duas exposições – uma de telas de grande porte, no Museu de Arte Moderna de São Paulo e a outra percorrendo vários estados do país – como chegou à maturidade. Isto, não pelas suas afinidades com esta ou aquela corrente mas ao contrário, pelos meandros que encontrou para construir a sua própria originalidade.
Quando Luiz Aquila começou a definir a sua pintura, no início dos anos 70, o olhar brasileiro já perdera a referência de cultivar uma pintura de qualidade - onde não é o primeiro impacto visual que conta, onde é preciso descobrir a grafia e a qualidade da pincelada, da matéria e da textura do quadro. É que na época, a grande maioria da produção brasileira navegava em outras direções. Aquila manteve-se fiel a telas muito elaboradas mas bastante emocionais, seu ponto de partida é sempre introspectivo e mesmo que o espaço seja bem definido, as pinceladas são livres e soltas. Tal coerência e também sua atividade didática fizeram com que ele se transformasse num pólo de referência para uma geração de jovens que desejava voltar a descobrir a qualidade da pintura. Foi assim que ele chegou até a ser considerado um dos criadores de um novo informalismo e até mesmo lhe foi atribuído o título de um dos pais da Geração 80 - o fenômeno que no Brasil correspondeu à explosão da pintura neo-expressionista do início dos anos 80.
Essas exposições atuais são importantes para situar a obra de Luiz Aquila. Ele vem de uma tradição da grande pintura e mesmo que tenha sido incluído no mesmo caldeirão expressionista que misturou tantos artistas nos últimos cinco anos, ainda assim conseguiu manter um severo equilíbrio. Ele tem, na pintura, o leitmotiv, uma obsessão que o acompanha de longa data – e já foi apontada em muitos outros textos críticos do contraponto entre as massas orgânicas e uma arbitrária geometria. O resultado são essas malhas que afloram como desenho e que se articulam com as áreas de cor e é dessa pontuação, perseguida em diferentes tonalidades, que Aquila constrói a sua arte da fuga.
Nas telas mais recentes, existe até mesmo uma preocupação com a horizontalidade, com um ritmo que se prolonga de tela para tela, como um tema contínuo, retrabalhado em diferentes nuances. Mas em nenhum momento se pode pensar nem nos sentimentos épicos que caracterizaram os novos expressionistas alemães ou nem o irônico comentário da pintura que de forma ácida também serviu de ponto de partida para muitos artistas desta década. Um amante fiel e constante: Luiz Aquila às suas telas. É muito mais na tradição da pintura inglesa contemporânea que ele foi buscar a sua tomada de posição. Ou seja numa certa coragem de admitir que o ponto de partida para cada quadro é intimista, pessoal, emotivo e biográfico. Nos anos 70, as suas telas tinham barras coloridas, centrando como que uma pintura dentro de outra pintura, e as malhas geométricas que separavam as áreas de cor partiam de paisagens do real. Era possível associar suas imagens a figuras dos anos 20, a uma retomada do art-deco e tudo isso Aquila foi deixando para trás em busca de uma delicada e sutil maneira de pintar. Se os novos expressionistas abusaram de espessas camadas de tinta, Luiz Aquila também ensina nessas telas as lições de transparências, superposições e superfícies que têm que vibrar mais pela cor ou pela maneira da pintura do que pela pasta de tinta empregada. É explicável a evolução da pintura de Luiz Aquila na direção em que ela toma atualmente também pelo fato de que é um dos pintores brasileiros que mais teve contato – e contato físico e visual – com boas telas e boa pintura. Ele foi vizinho de Djanira, filho de um personagem singular e de rara cultura que é o arquiteto Alcides da Rocha Miranda, conviveu com Guignard e Aloísio Carvão mas ao mesmo tempo, em bolsas sucessivas teve mais convívio com pintura européia – em Paris, Londres e Portugal – do que a média do pintor brasileiro. Para um pintor, esse tipo de informação é implacável e conta muito. Só quem pode ver muita pintura é que pode desenvolver um tipo de imaginário que não se revela ao primeiro momento. Só quem se acostumou a conviver com algumas obras-chave da pintura é que acaba percebendo como é que se pode trabalhar um tempo pictórico – um crescendo, numa tela que não é apenas o que se vê inicialmente. É por isso também que essas exposições de Luiz Aquila também contém uma força especial. No momento em que se fala de uma Documenta em Kassel onde é cobrado da arte – a criação como dever social ou como compromisso com a realidade – ou que o Whitney Museum of American Art de Nova York se dedica a mostrar Generations of Geometries é preciso também lembrar que em arte não se pode admitir somente uma única maneira de expressão e que ela não precisa obedecer ao raciocínio de alguns diretores de museus.
Afinal são os artistas e não as exposições de curadores que fazem a arte. Se hoje existe uma geração jovem de pintura no país, sem dúvida o exemplo de Luiz Aquila desde os anos 70 foi um estímulo importante para esses artistas. E no momento em que eles se vêem bombardeados por mudanças de mercado ou de moda nas artes, é novamente uma exposição como este painel duplo de Luiz Aquila que pode servir de revigorante alento. É possível ver neste conjunto, um refinado imaginário, um caminho inteligente e pessoal mas acima de tudo independente e confiante na força da própria pintura.
Casimiro Xavier de Mendonça Texto publicado no catálogo da exposição “Luiz Aquila Em grandes formatos” no MAM – SP 1987
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